Alguns objetos tem vida… Alguns dão vida
Sobre objetos que marcam, sem nem você se dar conta
Eu trouxe essa caneca de um bate e volta em Bruges, na Bélgica.
Eu lembro muito pouco desta viagem como um todo, que se deu por ocasião do casamento da minha prima, na Alemanha.
Aproveitei a ousadia de sair “de férias” em pleno final de abril (veja bem, eu trabalhava em uma escola, nas escolas a regra é clara: férias acontecem em janeiro e julho), e o investimento financeiro, para esticar para outros países e cidades, que resultou em uma viagem de 10 dias na qual passei por 4 países e 8 cidades (conselho que vos deixo: não façam viagens assim, o mundo não vai sair do lugar).
Deve ser devido à pressa e ao meu estado de espírito na época, que me lembro de pouco da viagem. No entanto, lembro bem de Bruges (embora minha lembrança de Bruxelas, de onde parti para Bruges e onde passei mais dias, seja um blurry absoluto).
Cheguei bem cedo, a sensação era de que, como um parque de diversões, a cidade ainda não tivesse aberto. Fechado também estava o tempo, uma decepção para dias de primavera europeus. Entrei numa loja para comprar uma blusa de frio a mais. O sol parecia tentar forçar passagem por entre as nuvens, sem sucesso, e eu me aborreci, pois esperava por aquele clima somente em dois dias, quando chegasse em Londres (fun fact: A Inglaterra esteve ensolarada por todo fim de semana que passei lá).
Os turistas começaram a chegar e a cidade finalmente pareceu começar a tomar vida. E eu a vi!
Brugse Boekhandel De Meester
Dizia a fachada em neerlandês. Não entendo nada desta língua, mas sabia que aquilo se tratava de uma livraria. Eu soube, porque meu coração deu uma acelerada.
Já tinha visto aquela palavra “Boekhandel” em um passeio pelo bairro judeu de Amsterdam onde morava Anne Frank, no janeiro daquele mesmo ano (quando, desta vez, estava de férias de verdade). Era a livraria onde o famoso diário tinha sido comprado. Mas esta é outra história. Aqui só cabe dizer que eu sabia que ali era uma livraria, e era linda, propositalmente combinando com todo o resto de Bruges.
Cabe dizer que, até uma viagem antes daquela, eu tinha decidido trazer para casa um livro de cada país que eu passasse. Só que passei a viajar somente com mala de bordo, e lembro de ter voltado com todos os livros adquiridos no mochilão anterior na mão, no avião. “Vou ler durante o vôo”, menti para a mocinha que estava conferindo se minha bagagem estava dentro dos limites permitidos.
Então ali eu já tinha desistido da coleção de livros de países. E estava de novo só com a bagagem de mão. E queria colocar aquela livraria inteira dentro dela!!!! (Tenho um fraco não só por livros, mas também por itens de papelaria.)
Respirei fundo e repeti para mim mesma o mantra “não vou comprar nada” enquanto passeava apaixonada pela Brugse Boekhandel De Meester. E aí foi mais forte do que eu: eu sabia que não tinha espaço na bagagem, e que não teria o menor argumento para trazê-la na mão. “Vou tomar um chazinho durante o vôo” definitivamente não ia colar. Mas eu passei pelo caixa antes de pensar duas vezes com ela. “Go Away. I’m reading“.
A caneca representava o que eu tantas vezes tive vontade de falar para as pessoas que atrapalhavam minha leitura (e uma vez eu realmente falei, para um rapaz querendo puxar assunto sobre o itinerário do Terminal Bandeira, no ponto de ônibus, enquanto eu lia a biografia do Led Zeppelin).
De lá para cá, adquiri algumas outras canecas que gosto muito. Não sou a louca das canecas. Mas umas são realmente muito bonitinhas, e tomaram seu lugar no armário da cozinha junto da caneca belga.
Cá estamos…
E então me mudei, cerca de dez dias atrás. Durante a mudança, tive que me desfazer de muitas coisas e tantas outras foram para a casa dos meus pais (estou me repetindo, eu sei. Já contei isso aqui). Todas as canecas foram para a coleção da minha irmã (esta sim uma louca das canecas). Exceto uma com tema de amplificador de música, e a caneca belga dos livros.
Ela segue me acompanhando nas leituras. Mas hoje enquanto lia João Carrascoza em Inventário do Azul, que fala sobre um homem solitário, me peguei com o seguinte trecho:
“Sempre as palavras a cativá-lo – ou a desencantá-lo. Depois de anos escrevendo, pela convivência diária com elas, começou a vê-las como pessoas, com suas facetas e, também, seus mistérios. Era capaz de perceber o quanto havia de sol na sombra de cada uma, o quanto de voltagem continham quando movidas e o quanto de silêncio represavam em seu estado de dicionário. Era capaz, ainda é. E como as pessoas, havia aquelas que ele amava, muitas das quais fugia, algumas de que desconfiava e procurava se manter distante.”
E percebi que ainda gosto do silêncio, e do momento eu e as palavras que a leitura proporciona. Mas hoje eu não preciso necessariamente que as pessoas vão embora porque estou lendo. Posso perfeitamente ler quando de fato estiver sozinha, e não espantar as pessoas para me ensimesmar com meus livros.
Na época em que gastei alguns euros não planejados com a caneca, porque ela conversou comigo de igual para igual, eu estava uma bagunça, e mal notei, por não me permitir acessar minhas sombras. Achava que só precisava estar sozinha (pelo menos acreditava cegamente nisso), para me redescobrir e me reinventar. Eu me sentia quase o protagonista deste livro, no entanto.
Hoje é diferente. Go Away. You Can Stay. I’m reading. I’m healed.
A saber: Nos 45 do segundo tempo do dia, fez sol em Bruges
* (8/21) “Objetos têm histórias pessoais que só os donos podem contar. Às vezes essa história nos precede; às vezes começa conosco.” – Este artigo faz parte do desafio de 21 dias de escrita, proposto pelo Matheus de Souza.
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